Crédito da Imagem: Luciane Pires Ferreira
Por Ytalo
Santana
“Meu cu para Fernanda
Montenegro”, disse Silvero Pereira, ou melhor, Gisele, durante o espetáculo Br – Trans do coletivo As Travestidas
dentro da programação da 3º edição do TREMA. Em que enxergo um manifesto não só
da valorização das travestis e sim da arte, da transformista da boate que
também é uma artista assim como qualquer outro. De maneira alguma a frase
inicial quis desmoralizar uma das nossas divas do teatro brasileiro, jamais!
Mas se encaixa numa plataforma em que só é ator/atriz valorizado aquele que tem
nome, fama, carreira de anos e grande marketing.
12 de abril de 2015, Teatro Hermilo Borba Filho, eu, mero
aluno de teatro por motivo pessoal estou ansioso com o espetáculo, já tinha
ouvido falar e tive boas referências
Casa lotada, o que gera
um pequeno desconforto devido ao pouco calor que fazia e ao fato de não ter
mais lugar e ser preciso sentar no chão. Pelo menos havia um acolchoado e a
coluna doeu pouco. Ou era isso, ou muitas pessoas ficariam sem prestigiar o
espetáculo. E na entrada da grande plateia o ator já estava em cena com um
lindo vestido vermelho com uma música de fundo ao vivo vindo de um teclado,
tudo durou uns 18 minutos até que todas as pessoas entrassem. A música para,
locução sobre o que é permitido no teatro começa, termina, e o artista corrige
a locução dizendo que pode sim tirar fotos e filmar, desde que não atrapalhe
com flashes e luz vermelha, e use a hastag #brtrans.
“Boa noite”, Silvero
Pereira/Gisele prestava bastante atenção à plateia que adentrava naquele
espaço, acredito que contaminou bastante e prejudicou um pouco no começo,
devido a sua fala um tanto acelerada. Mas conseguiu manter o equilíbrio na fala
pouco tempo depois. E eis que nasce uma personagem feminina, espanhola e
caricata. Uma energia contagiante, porém a sua fala eu ainda não compreendia
muito bem e comecei a observar o cenário; iluminação e sonoplastia, ambas
operadas pelo próprio artista em cena.
O cenário era um
apartamento bem aconchegante, onde o material para transportar o cenário servia
como elemento de cena também, tudo sendo bem aproveitado, um microfone estilo
anos 50 no meio, outro pequeno refletor que servirá como um abajur, um abajur
próximo ao teclado e objetos decorativos. E sem contar com o recurso
tecnológico usado, o slide. Tudo se TRANSformou numa grande unidade ao redor do artista.
“Quando criança me
disseram que se passasse por debaixo de um arco-íris virava mulher, passei
minha infância toda procurando um arco-íris.” Frase que apareceu no slide
enquanto Silvero cruzava o palco com movimentos performáticos. Quantas e
quantas crianças estão em busca desse arco-íris. Algumas têm a sorte grande de
ter uma família que compreende e outras infelizmente não, e são ‘demonizadas’
pelos seus pais, irmãos, parentes, amigos... e o manifesto começa, além de ter
que enfrentar a sua família, a travesti precisa enfrentar a rua, enfrentar seus
medos.
Numa bela explanação,
Silvero diz: “Medo da polícia, medo de não ser aceito, medo delas, medo de
noções, de sentimentos desconhecidos,
inclusive medo disso agora... ” “Mataram elas!” “Elas são corajosas, elas
mostram, vendem ou simplesmente dão.” Junto com esse manifesto um corpo
ganhando vida em cena, e eis que começam a surgir imagens de travestis
assassinadas, com seus respectivos nomes masculinos e nomes sob os quais eram
conhecidas. São 86 crimes cometidos e mostrados ao público. São as meninas
mortas, e ele diz: “O universo chora... alguém quem tem que chorar por isso.”.
No chão está desenhado uma representação de que ali foram mortas algumas delas,
mortas por uma sociedade ignorante.
O marcante desse
espetáculo é o fato do ator falar na primeira pessoa, te aproxima mais da
história, te deixa mais confortável com o texto. E começou a contar a sua história,
de sua luta. E quando um nordestino (cearense que ele é) mostra a força do seu
povo e se coloca à frente por uma causa tão nobre, não tem como não se emocionar,
e ainda acompanhado de uma boa música, além de todo um trabalho de corpo e voz,
o ator começa a cantar a música de
Caetano Veloso – Três Travestis, “Três travestis, três colibris de raça, deixam
o país e enchem Paris de graça.”
Se desprendendo do foco
manifesto, conhecemos Ofélia, e com uma fala já conhecida; no chão ela se
apresenta: “Eu sou Ofélia, a mulher que o rio não conservou.” E começa a apagar
as imagens (imagens estas que foram criadas no discurso inicial das corajosas
que tinham armas apontadas para as suas cabeças sem saber o motivo) dos corpos
no chão com uma força no olhar impecável. E como ela mesma disse: “Ofélia sai
pra rua vestida em seu próprio sangue.” Aqueles músculos tremendo de dor, de
medo, de agonia, de tantos e tantos sentimentos ruins estavam ali, escancarados
para nós.
Analisando aquela
Ofélia me recordo da música Cordeiro de
Nanã: “Fui chamado de cordeiro, mas não sou cordeiro não, preferi ficar calado
do que falar e levar não, o meu silêncio é uma singela oração a minha santa de
fé.” E principalmente por um elemento visual do cenário que em momento
algum foi usado, mas representava a fé tanto da travesti como a da unidade
cênica. Uma espécie de mini santuário.
O apagar das luzes pelo
próprio ator em cena também é um dos pontos altos, não é um Blackout geral, nem
um lento, é com a força das suas palavras, de suas histórias. O escuro
representa muito, assim como o claro, arrisco-me a dizer que é a omissão e a
libertação respectivamente. Luz acende, música animada. Da caixa que serve para
guardar o cenário, surge uma bolsa de plástico transparente. E é dela que surge
a história de Marcelly, direto da ‘Disney’ das ruas, dos viadutos, das praças.
Marcelly é narrada e sua representação é um abacaxi, junto com ela vem um facão,
que é uma freira que ajudaria Marcelly na sua estadia, e sem esquecer-se da
polícia que ficou com a parte de cima do abacaxi. Esse momento arranca várias
risadas da plateia, travesti não é só sofrimento. E boa parte da plateia ainda
participa experimentado o abacaxi que circula entre nós. Doce, amargo.
Assim como escreveu
Gisele em seu braço esquerdo, assim que terminou a história de Marcelly
escreveu Bruna no seu abdômen, transexual que mora com um rapaz de 22 anos.
Bruna faz o papel de que muitas mulheres fazem que é da ‘Amélia’, porém para
ela não é algo ruim não, pelo contrário. Quando se aposentar irá se casar.
Bruna é sim uma mulher de sonhos! Viva as todas as mulheres transexuais!
Com o jogo teatral do
desprendimento é notável outro corpo, o corpo inicial do espetáculo, e Gisele
vai até o canto e puxa um espelho, em que o vidro espelhado de verdade não
existe para podermos ver o rosto do ator, que faz os gestos vivos de alguém de
frente a um espelho. Relatando a sua convivência nesse apartamento, uma
situação inusitada, o vizinho de baixo fez uma dedetização em seu apartamento e
as baratas subiram e se tornaram suas companheiras.
Enfim, Gisele decide
colocar uma música para tocar e avisa que as travestis podem não gostar pelo
motivo de não ser música de bater o cabelo. Em inglês, ela puxa a caixa mais
uma vez, senta em cima e traduz a letra: “... mas eu não consigo acreditar que
deixei o passado para trás... essa parte eu não sei.” (risos da plateia), e no
supetão pula em cima da caixa e grita: “LIVRE-SE! LIVRE-SE! LIVRE-SE DELE!” e
em meios a risos, a comicidade e dor, ela torna a cena híbrida. “Procurando o
paraíso eu encontrei o demônio, em mim eu encontrei o demônio.” Todos nós carregamos
um demônio, mesmo negando, pois então livre-se desse peso que você carrega nas
costas, não só travestis e transexuais, você que é pessoa também o carrega.
Ao apagar todas as
luzes e deixar acessa a da cabeceira, uma leitura de uma carta: “11 de agosto
de 1996, meu querido filho...” Se seguirmos a linha Nelson Rodrigues, toda
família tem seu podre, tem sua mancha. Talvez ela fosse essa mancha apesar de
um pai ignorante: “senta como homem, conversa como homem.” E na escola faz um
alerta que infelizmente sabemos que é o motivo de muitos suicídios de crianças
homo, trans, “crianças diferentes” para a sociedade. As disciplinas cursadas
são: ódio, medo, solidão e EXCLUSÃO. E você é obrigado a fazer, e ainda traz
uma discussão contínua ainda, o banheiro. Segundo seu relato ainda na faculdade
enfrentou tudo isso e teve uma hora que mandou tudo para “puta que pariu”, “já
estava feminina mesmo”, e ainda bem que você teve tal coragem. E assim deu
abertura ao seu lado feminino e cantarola: “ser um homem feminino não fere o
meu lado masculino...”.
Na perfomance enxerguei
muito um professor que tive; os trejeitos, a feminilidade e masculinidade
dentro da mesma pessoa e a liberdade aflorada com a mistura dos dois gêneros. Ela
conta que conseguiu um emprego numa livraria, mas os clientes não sabiam se era
um homem ou uma mulher e o gerente a demitiu. Trabalhou no salão de beleza, mas
a dona do salão começou a ter ciúmes e também a demitiu, e sem dinheiro e
trabalho, restou à prostituição, e fecha a perfomance. E narra outra história
riscando a barriga, Dani. Dani Boy, conheceu no presídio ministrando uma
oficina e quando foi embora ganhou um presente, uma almofada que permanece
presente também durante todo o espetáculo. Aos que acreditam em “energias”,
Dani Boy estava ali naquela almofada. Não era apenas um simples agradecimento
por ter se sentido pela primeira vez livre.
E depois de toda essa
catarse de convivência no presídio foi parar na noite, porém o seu “boy” tinha
ciúmes da sua vida, uma relação turbulenta que só a prejudicou. Essa mistura de
“eu” e outras histórias te faz refletir a confusão que é a vida de uma
travesti, pois para viver bem a maioria delas vive como imigrantes em sua
própria terra, e não foi diferente com ela. Partiu, encontrou uma amiga, uma
bicha da boate que a incentivou a ser artista e queria a toda custo que Gisele subisse
no palco, ela não acreditava nisso, mas decorou a música e se preparou para o
grande momento.
Surge um elemento de
cena, dois lençóis branco, um se transforma em vestido e o outro no turbante.
Para mim foi o momento mais emocionante do espetáculo, quando nasce uma
artista, uma transformista. O caminhar dos braços, o olhar e corpo concentrados
naquela música belíssima da Maria Bethânia:
“perdoei-me do nome, hoje podes me chamar-me de tua, dancei em palácios, hoje
danço na rua.” E volto ao ponto inicial, à valorização desses artistas da
dublagem, representação ou imitação. A entrega é arte!
Tyna, do presídio
central. “Báh!”, da janela de uma parte do presídio avistava a casa da sua vó e
dizia que quando saísse de lá eles teriam que aceitar. A cena acontece em um
dos últimos momentos do espetáculo, quando o armário ao lado do piano serve de
troca de figurino, narrando a história de lá mesmo, o artista sai com um par de
botas que quase chega aos joelhos. E traz também a história de Babi, que tinha
um sonho de ser atriz e conheceu um diretor que a convidou para fazer um show
em um teatro lotado e uma música forte. As duas histórias são muito corridas,
mas têm um caráter significativo justamenta pela música que as encerra, Geni e o Zepelim: “joga pedra na Geni! Joga
bosta na Geni! Ela é feita pra apanhar! Ela é boa de cuspir! Ela dá pra
qualquer um! Maldita Geni!” Não tem como não se lembrar da Letícia
Sabatella na interpretação da música, inclusive o espelho, o piano e o
microfone. Mas se foi uma inspiração, acertou!
Corpo, alma e voz.
Sexualidade, travesti. Artistas. Guerreiras. Femininas e masculinas são mães,
irmãs, tias, filhas. São mulheres transexuais, são mulheres. Que bom que
artistas também lutam por uma sociedade com direitos iguais, com amor. O
espetáculo filosófico, reflexivo, formativo cumpre o papel de que teatro é para
todos e traz o manifesto da violência verbal, moral e física que todas sofrem
diariamente. Infelizmente não vi uma travesti na plateia, talvez até tivesse.
Mas existem muitas delas nos palcos das boates, das ruas, das praças, nas
festas de animações da vida. Vocês existem e ocupem o espaço que é nosso.
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