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Por Marcílio Moraes
Eu
não sabia ler, nem escrever e já percebia uma verdade que até hoje escapa a
Gilberto Freire: - não gostamos de negro. Nada mais límpido, nítido,
inequívoco, do que o nosso racismo. E como é humilhante a relação entre brancos
e negros. Os brancos não gostam dos negros; e o pior é que os negros não
reagem. Veja bem: - não reagem. (...) A ‘democracia racial’ que nós fingimos é
a mais cínica, a mais cruel das manifestações. (Nelson Rodrigues)
Inspirado por Nelson Rodrigues, diria que é óbvia e
ululante a situação de opressão sofrida pelos negros do nosso país, sobretudo, pelos
homens e mulheres adeptos das religiões de matrizes africanas que,
constantemente, são perseguidos e humilhados nessa sociedade que, em tese, denomina-se
laica e ancora-se em uma suposta democracia racial que, no entanto, trata-se de uma tentativa ordinária de varrer para
debaixo do tapete a sujeira do preconceito étnico-racial acumulada durante os
quase quinhentos e quinze anos de Brasil.
Consciente do fato, transfiro o problema para a
nossa arte, o Teatro, que durante muito tempo foi privilégio dos homens
brancos. No Brasil, o negro durante muito tempo esteve fora dos palcos, quando
era preciso pôr uma personagem negra em cena borravam a cara de algum ator
branco para que este representasse tal personagem. Toda história do negro no Teatro
brasileiro está carregada de situações desse tipo, no entanto, cabe destacar
que todos os avanços com relação ao negro no Teatro se devem aos grupos
teatrais vinculados a movimentos negros, como foi o caso do Teatro Experimental
do Negro (1945-61), fundado por Abdias do Nascimento, que fez do TEN um divisor
de águas na história do negro no Teatro brasileiro.
O Núcleo Afro-brasileiro de Teatro de Alagoinhas
(NATA) é, sem dúvida, um exemplo contemporâneo de um teatro que põe no palco a
figura do negro como uma forma de protestar contra toda nossa história de
preconceito, destaca-se também por ter como diretora e fundadora do grupo Júlia
Barbosa, que também é dramaturga, educadora e pesquisadora de cultura africana
no Brasil; seu trabalho artístico vinculado à pesquisa e à sua raiz no
Candomblé fazem do NATA um grupo de muita potência artística.
No dia 28 de março de 2015, pude ver o mais novo
espetáculo do NATA: Exu, a boca do
universo, no Teatro Capiba do SESC Casa Amarela, pelo festival Palco
Giratório. Fui ao espetáculo com muita expectativa e sede de conhecer o
trabalho do grupo, por haver lido algumas coisas sobre o trabalho que ele vem
realizando e, mais recentemente, por tê-lo visto representado no livro História do negro do Teatro Brasileiro,
de Joel Rufino dos Santos, e confesso que superei as minhas expectativas ao ver
o espetáculo.
Exu, a boca do
universo conta a história do
deus Exu, que no panteão africano é considerado um dos orixás mais importantes,
no entanto, ao logo do tempo foram atribuídas a ele características negativas.
O espetáculo cumpre a função de poetizar a história do orixá e mostrar ao seu
público as características de Exu que ainda são desconhecidas. Exu é um
daqueles espetáculos que impede qualquer postura blasé por parte do público ou de qualquer intelectual, entenderemos
o porquê.
Já no início do espetáculo os atores entram cantando
e entoado um canto a Exu, e vão até a plateia oferecer cachaça, mas veja bem,
estão ali para vender, cada dose custa um real, no meu entendimento, uma forma
de deixar claro que Exu não dá nada de graça, ele dá, mas também quer receber,
uma troca justa. Exu é exemplo de reciprocidade, se for agradado como se deve
saberá retribuir. Assim começamos a conhecê-lo e o espetáculo ganha gosto, o
gosto da cachaça que é doce ao mesmo tempo em que amarga e queima como fogo
goela a baixo.
É bom falar de fogo, é uma boa definição para o que
vi no palco do Capiba neste dia, havia bastante fogo no espetáculo inteiro, não
o fogo em sua forma física, é claro, mas em sua forma simbólica mais potente,
este fogo de que falo estava nos atores, em todos eles, sem exceção, aliás, um
grande mérito do espetáculo: todos os atores pareciam estar na mesma sintonia,
no mesmo nível, uníssonos como se espera de uma boa melodia. Voltando ao fogo,
ele se fazia presente nos atores, pude perceber uma grande concentração das
chamas nos olhos e no sexo, partindo do sexo – ou talvez prefiram chamar de
“centro” – o fogo se expandia por toda extensão do corpo e através dos olhos
eram lançadas as chamas sobre a platéia. Quem estava aberto, como eu, não
deixou de se queimar.
Porém, uma coisa me deixou profundamente incomodado
ao ver a apresentação do NATA, o espaço do Teatro Capiba é bastante reduzido, é
um espaço que eu adoro, mas que não comportou como devia o espetáculo do grupo
baiano. Veja bem, tudo no espetáculo parecia aumentar de tamanho, uma dilatação
de tudo, inclusive dos corpos dos atores, de forma que cada gesto parecia não
caber naquele espaço intimista, a peça parece ter sido pensada para espaços
maiores, devido a isso, o espetáculo teve de conviver com as consequências da
adaptação, os atores por vezes se esbarravam ou tropeçavam em refletores
localizados no chão do palco, contudo, isso não foi suficiente para prejudicar
o espetáculo, muito menos a performance dos atores que, aparentemente, souberam
lidar tranquilamente com as dificuldades da cena.
Havia na encenação uma unidade primorosa, cada
objeto de cena contribuía para a significação do espetáculo, a cena quase que
nos transportava para algum terreiro de Candomblé, as cores enchiam os
olhos.Vermelhos e amarelos se destacavam sobre o fundo preto da caixa cênica e
de outros elementos de cena, cores de Exu. Na iluminação percebi o uso de
poucos refletores, no entanto a iluminação estava na medida certa, bem
executada e dialogava com a dramaturgia da cena, criando o clima ideal para o
espetáculo.
Gostaria de destacar aqui algumas coisas que me
fizeram feliz ao ver o espetáculo: não precisamos ir muito longe para ver
espetáculos teatrais em que os atores são engolidos pelo texto, ou espetáculos
em que há uma exacerbada valorização do texto em detrimento da ação física dos
atores, felizmente isso não acontece com o espetáculo do NATA, os atores não se
deixam engolir pelo texto, pelo contrário, há um domínio de cada palavra pronunciada,
o espetáculo é muito musical, e os atores cantam o tempo inteiro, por isso, a
sensação que tenho é que, mesmo quando param de cantar e pronunciam as
palavras, é como se continuassem cantando. A palavra em Exu, a boca do universo tem força e agrada aos ouvidos, para o
deleite daqueles que estão cansados de espetáculos em que a palavra não possui
força e enfada.
A ação física dos atores também merece destaque, um
preparo corporal fabuloso. Como falei há pouco, o corpo de cada ator em cena
ganha uma dimensão ainda maior, se dilata e preenche o espaço, muita semelhança
com o que acontece nas cerimônias do Candomblé, em que o corpo dilata-se ao
receber a entidade, um outro tônus muscular é adquirido e a presença física se
destaca. Assim, víamos Exu representado, as suas várias características sob os
corpos dos vários atores, que de forma primorosa nos mostraram o melhor de um
Exu esquecido e menosprezado por muitos.
A sexualidade também foi bem explorada nos corpos
dos atores, não era pra menos, Exu está ligado a uma ideia de virilidade,
carrega consigo o Ogó de forma fálica
(uma espécie de cajado em forma de falo ereto), o que denota sua força e
potência, justificam-se, então, o fogo e a força presentes no sexo ou no
“centro energético” dos atores. Sem este fogo, talvez o espetáculo não tivesse
a mesma qualidade, Exu não poderia existir naqueles corpos, e como eles mesmos
disseram algumas vezes durante a representação, “Um corpo sem Exu é um corpo em
coma”, ora, pois deixemos que Exu habite nossos corpos e nos traga esse fogo,
essa vida.
Para concluir, cabe mencionar que, há alguns anos
frequentando espetáculos na cidade do Recife, raríssimas vezes pude ter a
satisfação de me deparar com tantos negros – principalmente negros adeptos de
religiões de matrizes africanas – numa plateia de Teatro, isso sem dúvida se
deve ao fato de que muitos negros não se sentem representados na nossa arte
teatral, na verdade, muitas pessoas não se veem representadas no Teatro que
fazemos hoje, nos acostumamos a fazer Teatro para os já iniciados, fazemos
Teatro para a “galera” que também faz Teatro, acrescida claro, dos nossos
amigos e familiares.
Que Teatro é esse que estamos fazendo? Qual o Teatro
que queremos? Qual o público que queremos alcançar com a nossa arte? O NATA parece saber bem qual o Teatro que
estão fazendo e que público eles querem agradar, só por isso posso dizer com
orgulho e sem medo de retaliações, que poucas vezes senti tanto prazer em
aplaudir um espetáculo de pé, não só pela sua qualidade artística, mas
sobretudo, por sua função cultural e social. Em suma, um Teatro do fogo, do rito
e da arte.
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